Merdas sérias, a brincar e assim assim. Uma janela para uma realidade que não tem, necessariamente, de ser a tua. Qualquer coisinha, já sabes, avisa.

quarta-feira, junho 16, 2004

A Insensata Humildade de Votar

Por MÁRIO MESQUITA
Domingo, 13 de Junho de 2004

reflexão@europeias.com

Dia de votação para o Parlamento Europeu. O tema eleitoral está vedado ao comentarista. O silêncio é obrigatório, embora não faltem assuntos para analisar, após esta estranhíssima campanha, com inesperado e dramático desenlace. Parece lícita, contudo, a referência ao tema da abstenção, com vista a defender a participação no acto eleitoral, mesmo que seja apenas piedosa manifestação de princípio, destituída de efeitos práticos...

Desde as eleições para a Assembleia Constituinte, a 25 de Abril de 1975, talvez por inércia, mas também pela ilusão de prolongar a ligação ao "espírito do lugar", permaneci sempre inscrito no Bairro Azul, onde então residia. Pela primeira vez, votarei hoje no Liceu Passos Manuel, freguesia das Mercês, que corresponde ao meu local de residência. A minha filha, que lá estudou, ensinou-me a apreciar este "casarão" do princípio do século XX. A própria estrutura, algo labiríntica, da escola, segundo ela, "ensina os alunos, todos os dias, decidir, a optar, a escolher...".

João Bénard da Costa, ao discursar em Bragança, a 10 de Junho, referiu-se a "eleições de fantasia", a propósito destas primeiras "europeias" com 25 países na União. Talvez pertençam mais ao reino das construções desejáveis do que ao "mundo real", mas ajudam a configurar o hesitante projecto europeu. Além disso, permitem medir a "temperatura" à opinião pública portuguesa sobre as questões internas. Para muita gente, não será exaltante votar. Afinal, a opção de cada eleitor pesa muito pouco no resultado final. Para alguns membros de certa elite, suposta herdeira do "velho" Portugal ("comem de garfo e faca há muitas gerações", no dizer de Paulo Portas, versão anos 90), da tradição salazarista, ou da "vanguarda revolucionária", de ideologia marxista, nem sequer vale a pena a deslocação à assembleia de voto.

vaillant@eleições. fr

No diário de Roger Vaillant, há uma passagem em que, numa perspectiva de militante revolucionário, o escritor desvaloriza o gesto de votar. Quando a li, pela primeira vez, antes de 1974, causou-me alguma irritação. Quem vive sob a ditadura, se não partilha convicções fascistas ou fascizantes, defende a regulação pelo sufrágio universal, ainda quando reconhece os seus limites. Refiro-me à "entrada" dos "Écrits Intimes" relativa ao dia 7 de Outubro de 1962. Vaillant já havia tomado as suas distâncias perante Estaline e o "estalinismo". Vivia a decadência do seu sonho militante nestes termos: "O sufrágio universal: nunca tenho em conta, na condução da minha vida, a existência de uma probabilidade em trinta milhões [totalidade do eleitorado francês à época em que o texto foi escrito]. Votar no regime sufrágio universal é um acto religioso. O boletim na urna com o seu cerimonial; um acto mágico que dá aos trinta milhões a ilusão de participar, excepto no plano municipal, sobretudo, ao nível da freguesia; e aí qualquer cidadão pode avaliar com justiça, qualquer pessoa com alguma prática da vida, como o agricultor que, fica a saber, com um só golpe de vista, toda a história passada, presente e futura de uma plantação. Mas que humildade insensata aceitar ser apenas o trigésimo milionésimo factor de uma acção, ou que aberração julgar-se por magia a encarnar o povo como o proprietário que se julga incorporado na sua casa."

Com a humildade de quem sabe que o seu grau de decisão corresponde a uma ínfima parcela do todo nacional ou graças à mágica ilusão de participar, vou invariavelmente depositar o boletim na urna. Mesmo quando não tenho especial motivação para escolher entre o Sousa, o Silva ou o Santos, exerço o direito ao voto. Prefiro cultivar essa "insensatez" ou essa "magia", a delegar as decisões numa elite iluminada, conservadora ou revolucionária, moderada ou fundamentalista.

Por isso mesmo, fico perplexo quando leio na capa de "A Capital" (sexta-feira), rejuvenescida por Luís Osório, que "nenhum jogador português irá votar (...) apesar de terem autorização de Scolari", sobretudo porque esta selecção nacional é apaparicada pelo Estado e acompanhada a todo o tempo por "cicerones" do "sistema político" que bem podiam ter "aconselhado" ou "incentivado" os atletas a votar. À imagem e semelhança do que costuma fazer a Igreja Católica com as freiras e os internados nos "seus" lares da terceira idade.

Folheio o jornal fundado, nos anos 60, por Norberto Lopes e Mário Neves. Afinal, a informação sobre este assunto, em página interior, é ligeiramente diferente do enunciado da primeira página: os seleccionados "estão livres para exercer o direito de voto nas eleições europeias", mas "é pouco crível que alguém saia de Alcochete com esse objectivo". Tudo se situa, afinal, no domínio das previsões. Sucede que este tipo de informação, seja falsa ou verdadeira, funciona, na prática, como desincentivo à participação. Assemelha-se aos famosos "inquéritos de rua" das televisões, cujo valor informativo é quase nulo. Já se adivinha, de antemão, qual será o discurso dominante, mas, através da repetição e da redundância, fomenta-se o alheamento. A abstenção é uma constante nas "europeias", mas nem por isso deixa de chocar a pragmática do abstencionismo nas televisões e, em especial, no serviço público. Claro, a abster-se é legítimo. Todos os cidadãos, como dizia Camus (embora noutro sentido), podem usufruir do "direito a ficar em casa"... A televisão é que não deve - por omissão ou por acção - incentivar o desinteresse o comodismo e o alheamento. Não deve, mas, como é notório, pode. E, provavelmente, para alguns, é conveniente que possa...

normandia@ausente.pt

Para compensar o vazio criado em torno das "europeias" e "quebrar" o folhetim do Euro, tivemos, nos últimos dias, a presença reconfortante e lúcida de Eduardo Lourenço, que nos desafia a pensar e, com isso, nos inquieta (artigo no PÚBLICO sobre as europeias; longa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, no DNA; declarações a Luís Osório em "A Capital").

Eduardo Lourenço refere-se às comemorações do desembarque aliado na Normandia. Na entrevista de "A Capital", lamenta a relativa abstenção das televisões portuguesas quanto às cerimónias organizadas em França: "Preocupa-me (...) a falta de memória. Alguma televisão deu realce às celebrações dos 60 anos do desembarque na Normandia? Sei que alguns jornais o fizeram, mas as televisões acabam por ser determinantes para a consciência e percepção colectiva. O argumento deve ser: não houve portugueses a combater durante a II Guerra Mundial. Mas o País esteve suspenso durante seis anos, os portugueses estavam suspensos do destino da Guerra. Além do mais é um pico da tragédia da história da humanidade. E aconteceu apenas há 60 anos!".

Compare-se o acolhimento pleno das televisões portuguesas ao casamento real em Espanha - transmissão directa e integral, em simultâneo nos três canais - com o desinteresse pelas cerimónias da Normandia. Se a televisão desempenha, entre outras funções, a de construir a "história em directo", a televisão portuguesa escolheu, no caso do "Dia D", o esquecimento contra a memória, preferiu o critério da revista cor-de-rosa ao do jornal de referência. Nesse aspecto, ajusta-se bem à descrição do próprio Eduardo Lourenço, na entrevista ao DNA: "O espaço próprio da civilização a que pertencemos chama-se televisão. A televisão é um instrumento de 'divertissement', daquilo que Pascal considerava como afastamento das únicas coisas necessárias e verdadeiramente profundas e importantes. É uma cultura do esquecimento e uma criação do esquecimento sobre o esquecimento."